quinta-feira, 19 de outubro de 2017


Repousava bem perto um do outro, a matéria e o espírito.
Bem aventurado, pensei eu comigo, aquele em que os afagos de uma tarde serena de primavera no silêncio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruído da vida!

E este pensamento trouxe-me pouco a pouco á memória as tempestades do passado!
Ai de mim! Logo se me enxugaram as lágrimas, porque eram de consolação, e essa lembrança as estancou!



Por cima da minha cabeça passava o norte agudo.
Eu amo o sopro do vento como o rugido do mar.

Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do Verbo de Deus, escritas na face da terra quando ela ainda se chamava o caos.

Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer.

E o vento e o mar viram nascer o gênero humano, crescer a selva, florescer a primavera; - e passaram, e sorriram-se.

E Depois viram as gerações reclinadas nos campos do sepulcro, as árvores derribadas nos fundos dos vales, secas e carcomidas, a flores pendidas e murchas pelos raios do sol de estio, - e passaram-se e sorriram-se.

Que tinham eles de feito com essas existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas de outro?

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Anatole France.

"Já que vamos todos pecar nesse mundo, é contigo que gostaria de comprovar a clemência de Deus, se, todavia pudesse ser sua vontade também.
Encontraria, quanto a mim, duas vantagens:
primeiro: a de pecar com uma alegria particularmente gostosa;
Já a segunda: a de encontrar, depois, uma desculpa na atração irresistível dos teus encantos.
Existem imprudentes que fornicam com mulheres feias e malfeitas, esses infelizes correm o risco de perder sua alma, porque pecam por pecar;
Enquanto, uma pele como a tua, é uma desculpa aos olhos do eterno."


O que eu sou



Quando para mim olhares,
Não vejas o corpo meu;
que este corpo é impuro,
que um sopro de vida ergueu,
e a morte tem seguro,
como espólio que é já seu.

Quando para mim olhares,
vê-me qual és, qual eu sou,
deste corpo mui diverso,
onde apenas preso estou;
como a criança em seu berço
onde a mãe a enfaixou.

Quando para mim olhares,
não para o barro mortal,
ver-me às tão puro, tão belo,
como o raio matinal,
rompendo o espesso novelo
de terras no céu brumal.

Eu alma sou, nobre, eterna,
nobre, eterno é meu amor,
de essência mais alta e forte,
que do sol o resplendor;
pois não é sujeito a morte,
o que é de Deus um fulgor.

Eu alma sou, nobre, eterna,
que vim no mundo vagar,
até encontrar outra alma,
a quem só devesse amar,
de quem recebesse a palma,
do meu tão longo penar.

Eu alma sou, nobre, eterna,
alma sou, filha de Deus,
que pelo mundo só erra,
por amor dos olhos teus,
e que vem dar-te na terra,
esse amor que é lá dos céus.

A minha alma amar só deves,
a mim só deves querer,
se o corpo também amares,
poderás te arrepender,
como quem se lança aos mares,
a ignotas terras ir ver.

A minha alma amar só deves,
que ela só sabe sentir,
o amor que tua alma sente,
e transluz no teu sorrir,
como nos mares do oriente vê-se as perlas seduzir.

Mas se julgas que amar deves,
a este corpo também,
como se ama o pobre alvergue,
onde habita o caro bem,
aos meus olhos os teus ergue,
onde por ver-te a alma vem.

Gonçalves Dias.

No Templo, ao romper da alva. 1843

O sol oriental que ora bate ridente no pavimento da igreja aflige a minha alma, porque me parece que, iluminando essa terra condenada se assemelha ao homem cruel que viesse dar uma risada junto ao leito do moribundo.

Porque te haveria eu de amar? ó Sol, se tu és o inimigo dos sonhos do imaginar; se tu nos chama à realidade, e a realidade é tão triste?

Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e ás horas mortas do alto silêncio, a fantasia do homem é mais ardente e robusta.

É então que ele dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento as selvas que maneiam e gemem á mercê da brisa noturna.

É então que ele colige as suas recordações, une, parte, transmuda as imagens das existências que viu passar ante si e estampa nas sombras que o rodeiam um universo transitório, mas para ele real.

E é belo esse mundo de fantasmas aéreos, por entre cujos lábios descorados não transpiram nem perjúrio nem dobrez, e a cujos olhos sem brilho não assoma o reflexo de ânimos pervertidos.

Aí há o repouso, a paz e a esperança que desapareceram da terra, porque o mundo das visões cria-o a mente pura do poeta, ela dá corpo ao que já só é ideal, e o passado, deixando cair o seu imenso sudário, ergue-se em pé e pondo-se diante do que medita, diz-lhe: aqui estou eu!!!!

E este o compara com o presente e recua de involuntário terror.

Porque o cadáver que se levanta do pó é formoso e santo, e o presente que vive e passa e sorri é horrendo e maldito.

E o poeta chorando, atira-se ao seio do cadáver e responde-lhe: esconda-me tu!!!

É lá que esta alma, árida como a urze, sente, quando aí se abriga, refrescá-la um como orvalho do céu.

Pag. 35 e 36, Eurico, O Presbítero.
Autor: Alexandre Herculano.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Eclesiastes 1.14




Atentei para todas as obras debaixo do sol,
e eis que tudo era vaidade e aflição do espírito,

falei ao meu coração dizendo: sim, me engrandeci
realmente,
permiti ao meu coração conhecer a grandeza, a loucura e o devaneio,
e percebi que isso tambem era aflição de espírito

pois em muita sabedoria habita muito sofrer
e o que aumenta o saber, aumenta a tristeza.